terça-feira, 20 de março de 2012


A GUERREIRA

Eu sou um dos filhos da senhora Iansã, ela tem nove filhos e quando partiu deixou para nós um chifre de búfalo para que pudéssemos chamá-la através dele. Um dia quando ela veio nos visitar, eu pedi para ela contar uma história, uma das muitas histórias que ela viveu nesse vasto mundo guerreando pelos seus. Sim, meu filho, eu posso contar muitas histórias que eu vivi nas minhas andanças por este mundo. Qual história você quer ouvir? Quero ouvir alguma história que a senhora viveu com Iemanjá, ouvi dizer que a Senhora tem ciúmes dela, que não gosta dela. Isto é verdade, minha mãe?
Besteira, meu filho. Eu sou enviada de Oxalá, sou guerreira, sou mulher e sou mãe igual a ela, como posso ter ciúme, intriga ou qualquer outro sentimento ruim com a grande mãe? Eu sempre fui muito senhora de mim, sempre me garanti em qualquer situação e nunca arredei o pé de qualquer batalha, jamais neguei um pedido de um filho meu. Por eu ter amado Ogum, recebi dele uma espada para entrar em qualquer batalha e sair vitoriosa. Por eu ter amado Xangô,o rei de Oío, recebi dele o segredo do raio e do fogo que sai pela boca. Por eu ter ajudado o homem mais bonito que conheci, Obaluaê, ele me ensinou os segredo do domínio sobre os mortos. Ossaim me ensinou os mistérios das ervas e o poder da cura de qualquer enfermidade. Eu domino também os ventos e tempestades. Desta forma muitas tribos me chamam para ajudá-las nas mais diversas situações, e eu sempre auxilio a todos que me pedem ajuda, sem distinção. Durante algum tempo eu ajudei uma tribo de guerreiros perto do mar do norte, eu era sua guardiã e protetora. Esse povo era muito forte e próspero, e possuía muitas riquezas em seu território, por isso eram sempre atacados pelas tribos vizinhas. Como eu era a guardiã deles, sempre que me chamavam eu estava presente nas lutas e eles sempre saíam vencedores e sempre aumentando mais e mais seu poder. Com o tempo as tribos vizinhas perceberam que não adiantavam seus ataques porque eles eram muito fortes e ainda eram ajudados por mim. Então permaneceram algum tempo sem atacá-los, juntando forças para um ataque combinado e mais elaborado. Essa guerra foi boa. As tribos se enfrentavam com ferocidade e o sangue dos guerreiros lavava o chão do campo de batalha. O combate durou dias. Eu atacava o inimigo sem dó e inspirava os outros guerreiros que também lutavam por suas vidas. No terceiro dia de luta, quando já não pisávamos no chão, mas somente em corpos, apareceu do meio de uma das tribos inimigas um guerreiro realmente forte. Com este valia a pena lutar, ia dar trabalho, pensei. Naquele momento todos já estávamos exaustos, mas lutávamos por nossas vidas. Para minha surpresa aquele bravo parecia inteiro e cada golpe seu era carregado de uma força descomunal. Na verdade o guerreiro havia sido uma surpresinha de última hora das tribos inimigas; eles o deixaram de fora da batalha os dois dias anteriores para descansar e assim acabar comigo quando eu já estivesse bastante cansada. 

Eu realmente não sabia o que fazer. A fome e o cansaço me dominando e o guerreiro avançando sobre mim com toda sua fúria; os golpes pareciam vir de todos os lados. Já tinha dado o combate por perdido, mas não ia me entregar, não sem antes deixá-lo sem algum braço ou feri-lo um pouco para que outro guerreiro pudesse terminar o serviço mais tarde. Foi quando eu senti uma força atrativa me puxando para o mar. Não sabia o que era, mas fui atraindo o inimigo para lá. Foi aí que tudo começou a mudar. O guerreiro precisou tirar sua pesada armadura para poder se movimentar melhor na água e assim ficou mais vulnerável. Mas ainda assim ele era muito forte e ágil. Contrariando toda a lógica, fui sentido minhas forças se renovando mais e mais a cada momento. Parecia que alguma outra força, até maior que a minha, me dominava. Eu não sabia o que era, só sabia que eu tinha o controle do combate naquele momento. Após algum tempo o guerreiro, sem alternativas, procurou dar fuga ao combate. Seria bom ver aquele gigante correndo entre seus pares, assustado, mas era preciso terminar a luta com dignidade. Mais um pouco e eu cravei minha espada em seu ventre. O gigante se contorceu tanto que acabou arrastando a valiosa espada que Ogum me dera de presente com ele para o fundo do mar. Era o fim da batalha para minha tribo. O campo estava tomado de sangue e corpos por todos os lados, e os que estavam vivos quase não paravam em pé. Minha tribo nem comemorou a vitória. 

Enquanto estávamos esbaforidos contando nossos mortos, uma figura feminina muito doce saiu do mar e caminhou em minha direção. Ela carregava minha espada em sua mão direita e me entregou olhando docemente em meus olhos. Percebi que aqueles domínios eram dela e fora ela quem me arrastara para lá, para que pudesse me ajudar com sua força maior que a minha. Como pode uma figura parecer tão frágil e tão doce e ainda possuir tamanha força, pensei comigo enquanto olhava no fundo de seus olhos azuis. Eu pousei minha cabeça no chão lavado de sangue de bravos guerreiros e a agradeci, todos os sobreviventes fizeram o mesmo. Sem dizer nada, com seu mesmo ar doce ela se virou e entrou no mar novamente.

Nesse dia eu aprendi uma lição, meu filho. Não importa quantas armas você tenha ou o quão poderoso você seja, você sempre precisa de alguém, e nós nunca podemos recusar uma ajuda amiga.

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